segunda-feira, 29 de agosto de 2005

Tradução Heidegger

Qué significa pensar? Sexta lição HEIDEGGER. Martin § 1º_ Mais perspicaz que ninguém antes dele, Nietzsche se adverte de que o âmbito do pensamento ocidental exige a necessidade de uma mudança, (passagem, transição) envolvendo o perigo de que o homem tal como existiu até agora vá se instalando com pertinácia sempre crescente na mera superfície e o plano periférico de sua essência tal como foi até o presente, ao mesmo tempo que concede ao superficial deste plano o caráter de única habitação (moradia) possível para sua morada na terra. Este perigo é tanto maior quanto ao que se apresenta ao momento histórico no qual Nietzsche foi o primeiro a compreender claramente, sendo também o único até o momento que meditasse metafisicamente sobre todos seus alcances. É o momento em que o homem se prepara (dispõe) a assumir o poder sobre a terra em sua totalidade. § 2º_Nietzsche é o primeiro que se coloca a pergunta: o homem enquanto homem com sua essência tal como esta é até o presente, está preparado para a assunção do poder? E, de não ser assim, que deverá produzir-se no homem tal como foi até o presente, para que possa submeter-se à terra, complementando, desta maneira , uma palavra do Antigo Testamento? Dentro do horizonte do seu pensamento, Nietzsche chama a este homem tal como foi até o momento, “o último homem”. Este nome não quer significar que, com o homem assim denominado, simplesmente se acabe a essência do homem. Antes disso, o último homem é aquele que já não é capaz de ver (mais) além de si mesmo e de ascender antes de mais nada por alto (superficialmente) a si mesmo até o âmbito de sua missão, para fazer-se ‘carga’ da mesma, conforme a sua essência. O homem tal como é até agora, não foi capaz de fazer isto, por não ter ainda entrado na plenitude de sua própria essência. Nietzsche esclarece: esta essência do homem ainda não foi definida, isto é, não foi descoberta (encontrada) nem determinada. Por isso, diz Nietzsche: “ o homem é o animal ainda não definido. Esta afirmação soa estranha. Contudo, não faz senão pronunciar o que o pensamento ocidental pensou a cada momento sobre o homem. O homem é o animal rationale, o animal racional. Pela razão o homem se eleva sobre o animal, mas de maneira que a todo instante (momento) tem que olhar para baixo à altura do animal, (olhar com superioridade) para submetê-lo, para dominá-lo. Se tomamos o animal como o sensível, e a razão como o não-sensível e supra-sensível, então, aparece o homem, o animal rationale, como o ser sensível-suprasensível. Se, de acordo com a tradição, denominamos o sensível como o físico, então a razão, o suprasensível, mostra-se como algo que transcende o sensível, o físico. Diz-se, além, em grego meta; meta ta jnsica: além do físico, sensível; o suprasensível; o além do físico, é o metafísico. O homem, enquanto se representa como animal rationale, é o físico na superação do físico; dito em uma palavra: na essência do homem como animal rationale se congrega o além do físico para o não-físico e suprafísico: desta maneira o homem é o metafísico mesmo (é a própria metafísica?) Agora, enquanto para Nietzsche nem o físico e sensível do homem, ou seja, o corpo, nem o não-sensível, ou seja, a razão, estão suficientemente representados em sua essência, permanece o homem, segundo a definição usada até agora, como o animal ainda não representado, e com isto, ainda não definido. A antropologia moderna que, como a psicanálise, explora excessivamente os escritos de Nietzsche, cometeu um erro fundamental com a interpretação que deu a este enunciado, não chegando sequer a perceber-se de seus alcances. O homem é o animal contudo não definido; o animal rationale não alcançou ainda a plenitude de sua essência. Mas para poder determinar, antes de mais nada, a essência do homem tal como até o presente, é necessário levar a este homem (mais) além de si mesmo. O homem tal como é até o presente, é o último homem no sentido de que não é capaz, e isto vale dizer que não quer, submeter-se a si mesmo e desprezar (abominar, ludibriar) o desprezível de sua maneira de ser até agora. Por isso, tem que buscar para o homem a transição (passagem, mudança) para o além de si mesmo. Por isso, há de encontrar a ponte que conduz à essência em virtude da qual o homem tal como foi até agora possa ser o vencedor da essência que foi até o presente, e que é a última. Esta espécie de homem que se eleva (mais) além de si mesmo, vislumbrada por Nietzsche, ele a funda, por lo pronto, no molde de Zaratustra. Para o homem que vai (más) além de si mesmo, colocando-se, desta maneira, acima de si mesmo e determinando-se deste modo pela primeira vez a si mesmo, Nietzsche escolhe um nome que se presta (que contribui) em excesso às interpretações equivocadas. Nietzsche chama o homem que vai (más) além do que existiu até agora, o além-do-homem. O que Nietzsche precisamente não quer dizer com este nome, é um homem tal como foi até agora e somente superdimensionado. Tampouco designa uma espécie de homem que despreza o ‘humano’, exaltando o arbítrio como lei e fazendo uma regra do delírio titânico. O além-do-homem é aquele que transpõe a essência do homem que foi até agora, a sua verdade, incorporando-se a esta última. O homem que foi até agora, determinado assim em sua essência, há de por-se em condições, por este meio, de ser no futuro o senhor da terra, isto é, de administrar as possibilidades do poder em um sentido elevado, possibilidades que advêm ao homem futuro a partir da essência da transformação técnica da terra e de ação humana. A figura da essência deste homem, o além-do-homem retamente pensado, não é o produto de uma fantasia obscena e pervertida que vai se precipitando ao vazio. Mas tampouco foi encontrada esta figura pela via de uma análise histórica da época moderna, senão que a figura da essência do além-do-homem é atribuída ao pensamento metafísico de Nietzsche porque este seu pensamento foi capaz de encaixar-se puramente no destino precedente do pensamento ocidental. No pensamento de Nietzsche vai aflorando já o que é, ainda que permaneça contudo inacessível ao modo corrente de representar. Por isto, cabe também a suposição de que o além-do-homem exista já aqui e lá, ainda que todavia invisível à luz pública. Mas jamais devemos buscar a figura da essência do além-do-homem naqueles personagens que são promovidos como altos funcionários de uma vontade de poder superficial e mal interpretada nos altos postos das diversas formas de organização daquela. O além-do-homem tampouco é um mago que há de conduzir a humanidade para a bem-aventurança (felicidade) paradisíaca da terra. § 3º_ “O deserto está crescendo; desventurado o que acolhe (hospeda, aloja) desertos!” A quem se dirige este ‘desventurado’? É o além-do-homem; porque o transeunte (passante) há de ser um decadente; o caminho do além-do-homem se inicia no ocaso (pôr-do-sol; como figurativo: declínio; ruína) Com semelhante ponto de partida já está decidida sua trajetória. De novo faz falta a seguinte observação: porque a afirmação do que mais instiga a pensar em nossa época que dá o que pensar_ todavia não estamos pensando_ se relaciona com a palavra nietzschiana de deserto que está crescendo, e porque nesta palavra se pensa no além-do-homem, devemos tentar esclarecer a essência do além-do-homem até o ponto requerido pelo nosso caminho. § 4º_ Nos colocamos agora a resguardá-lo dos sons falsos e confusionistas que ressoam para a opinião habitual ao se escutar a palavra “além-do-homem”. Em seu lugar observaremos a um triplo e simples estado de coisas que se insinua como por si só a raiz da palavra “além-do-homem” pensada com simplicidade: 1. O ir mais além. 2. De onde parte a transição (passagem, mudança). 3. Aonde vai a transição. § 5º_ O além-do-homem vai mais além do homem tal como foi até agora e que, por isso, é o último homem. De não permanecer (ficar) estancado (detido, paralisado) na espécie do homem tal como foi até agora, o homem é uma transição; é uma ponte; é uma “corda estendida entre o animal e o além-do-homem.” Este último é, pensando com rigor, a figura do homem para a qual transita o transeunte. Zaratustra não é todavia o mesmo além-do-homem, senão o primeiro absolutamente que transita para aquele, ou seja, que é ele que se está fazendo um além-do-homem. Por diversas razões limitamos aqui nossa consideração a esta figura provisional do além-do-homem. Mas antes tem que prestar atenção a esta transição. O que, logo, resta para meditar mais a fundo, é o segundo: a saber, de onde parte o transeunte, isto é, de que espécie é a posição do homem que foi até agora, o último homem. Em terceiro lugar havemos de pensar aonde se translada o transeunte, isto é, qual é a posição em que se haverá de situar o homem transeunte. § 6º_ O primeiro, a transição, somente nos faz claramente perceptível a nós, se pensamos sobre o segundo e o terceiro: o de-onde e o a-onde do homem transeunte que se vai transformando na transição. § 7º_ O homem (más) além do qual vai o homem transeunte, é o homem qual tem sido até agora. Nietzsche, portanto, quer recordar sua definição essencial usada até agora, o caracteriza contudo como o animal não definido. Nisso se encontra contido o homo est animal rationale. Animal não significa um ser vivente; também o é uma planta, e não por isto podemos dizer que o homem é uma vegetação racional. “Animal” (em latim) significa animal, animaliter significa (por exemplo também em Santo Agostinho): “de maneira animal”. O homem é o animal racional. A razão é a percepção daquilo que é, e isto significa sempre a la vez: do que pode ser e deve ser. Perceber encerra em si, e isto por graus, o seguinte: conceber, receber, aproximar-se de algo, tratar a fundo um assunto, o qual implica discuti-lo ponto por ponto. Em latim o “discutir ponto por ponto” se diz: reor; a palavra rea (retórica) do grego significa a capacidade de tratar um assunto a fundo e discuti-lo ponto por ponto; reri é a razão; animal rationale é o animal que vive percebendo de maneira descrita. O perceber atuante na razão pro-põe fins, im-põe regras, dis-põe os meios e põe em consonância o atuar com as distintas classes de atividade. A percepção da razão se desenvolve assim como um múltiplo “por-se” que em todo lugar e diante de tudo é um pro-poner, ou seja, um re-presentar. Assim poderia dizer também: homo est animal rationale: o homem é o animal que representa. O mero animal, por exemplo, um cão, nunca representa nada, porque jamais poderá por algo diante de si; para isto o animal deveria perceber-se a si mesmo. Mas não pode dizer “eu”, pois não pode dizer coisa alguma. O homem, ao contrário, é, segundo o ensina a metafísica, o animal que re-presenta, o animal do que é próprio poder dizer algo. Sobre esta definição essencial do homem se estrutura, logo, a teoria do homem como pessoa, que a partir daí pode expor-se teologicamente. Pessoa alude à máscara da representação dramática através da qual resuena (ressoa?) o dizer daquela. Portanto, o homem como observador (percipiente_ aquele que percebe) percebe o que é, pode pensá-lo como pessoa, é dizer, como máscara do ser. § 8º_ Nietzsche caracteriza o último homem como o que foi até agora, o que, por assim dizê-lo, consolida em si mesmo a essência do homem tal qual existe até o presente. Por isso, é precisamente o último homem quem se mantém mais distante da possibilidade de passar mais além de si mesmo para deste modo ter-se sujeito a si mesmo. Devido à maneira de ser do último homem, a razão, o representar tem em conseqüência que perecer de um modo peculiar, e, por assim dizer, obstruir-se (impedir-se, fechar-se) em si mesmo. O representar acaba então por ater-se somente ao que seja justa-posto ou pro-posto, e isto em qualidade tal, cuja proposição fica regulada pelo manejo e o arbítrio do representar humano e que por mútuo convênio se ajusta à compreensibilidade e conveniência gerais. Tudo o que é, chega a manifestar-se somente na medida que graças a este representar tacitamente convencido (persuadido) se propõe como um objeto ou um estado de coisas, obtendo desta maneira sua licença de admissão. O último homem, a espécie definitiva do homem tal como foi até agora, confere-se em geral assim mesmo e tudo o que é, a estabilidade, por meio de uma maneira especial de representar. § 9º_ Mas escutemos agora o que o próprio Nietzsche faz dizer em seu Zaratustra sobre o último homem. Somente faremos menção de umas poucas passagens que se encontram no “prólogo” de Assim falou Zaratustra (1883, nº 5). Zaratustra pronuncia o prólogo no mercado da cidade a que chegou inicialmente depois de sua descida das montanhas. A cidade “estava situada junto aos bosques”. Estava ali reunida grande multidão do povo, ao que se lhe havia prometido que se exibiria um equilibrista, ou seja, um transeunte. § 10º_ Certa manhã Zaratustra havia posto fim a sua estada de dez anos nas montanhas, para retornar aos homens. Nietzsche escreve: “ _ e uma manhã se levantou com a aurora, se pôs frente ao sol e lhe falou dessa maneira: § 11º_ “Oh, magno astro: a que ficaria reduzida tua felicidade (sorte), de não ter a quem iluminar? (“Que seria a tua felicidade, ó grande astro, se não tivesses aqueles que iluminas?” § 12º_ Durante dez anos não deixaste de subir até minha caverna: farto (cansado, saciado) estarías já de tua luz e deste caminho faltando eu, minha águia e minha serpente.” (“São dez anos que sobes à minha caverna; e já se te haveriam tornado enfadonhos a tua luz e este caminho, sem mim, a minha águia e a minha serpente.”) § 13º_ Nestas palavras, cujas raízes remontam historicamente até o centro da metafísica de Platão e, em conseqüência apontam ao essencial de todo o pensamento ocidental, está cifrada a chave do livro de Nietzsche Assim falou Zaratustra. Sozinho desceu Zaratustra das montanhas; mas ao chegar aos bosques, encontrou com um velho (antigo, ancião) eremita “que havia abandonado sua sagrada capela (choupana).” Quando Zaratustra depois do diálogo com o eremita, voltou a estar só, disse em seu coração: “Pois, será possível! A este velho santo em meio de seus bosques não lhe chegou ainda a notícia de que Deus está morto?” (nº2). A chegada ao mercado da cidade Zaratustra tenta ensinar ao povo imediatamente “o além-do-homem” como “o sentido da terra”. O povo, no entanto, somente se coloca a rir-se de Zaratustra que tem que reconhecer que todavia não chegou o tempo nem é esta a maneira indicada de falar, ao ponto e sem rodeios, do mais sublime advento, e que somente convém falar imediatamente e pelo momento apenas do contrário. § 14º_ “Assim, pois, quero falar-lhes de mais abjeto desprezível: isto é, do último homem”. Deste discurso sobre o último homem, tomado do prólogo do que Zaratustra fala em seus discursos propriamente ditos, somente escutaremos algumas frases, para ver em que consiste a classe de essência humana a partir da qual há de operar-se a transição. § 15º_ E assim disse Zaratustra ao povo: § 16º_ “Ah! Tempo virá em que o homem deixará de disparar a flecha de sua nostalgia para além do homem, e a corda de seu arco terá esquecido de vibrar. (“Ai de nós! Aproxima-se o tempo em que o homem não mais arremessará a flecha do seu anseio para além do homem e em que a corda do seu arco terá desaprendido a vibrar!”) § 17º_ “Ah! Tempo virá em que o homem já não produzirá estrela alguma. Ah! Tempo virá que será o tempo do homem mais desprezível, que já não será capaz de desprezar-se a si mesmo.” (“Ai de nós! Aproxima-se o tempo em que o homem não dará mais à luz nenhuma estrela. Ai de nós” Aproxima-se o tempo do mais desprezível dos homens, que nem sequer saberá mais desprezar-se a si mesmo.”) § 18º_ “Eis aqui, que os mostro o último homem. Que é amor? Que é criação? Que é anseio? Que é estrela?, assim pergunta o último homem, piscando.” § 19º_ A terra então se terá feito mais reduzida e sobre ela irá saltando o último homem que tudo apequena. Sua espécie (genealogia) é inextinguível como a pulga da terra. O último homem é o que vive por mais tempo. Inventamos a felicidade_ dizem os últimos homens piscando.” Passagem da Sexta lição para a Sétima § 1º_ Tratamos de olhar na direção que toma o itinerário do pensamento de Nietzsche; pois, naquele itinerário toma sua origem a palavra: “O deserto está crescendo: infeliz daquele que abriga desertos!” Esta palavra, ao mesmo tempo (a su vez) se trata de explicar mediante o enunciado: “O gravíssimo de nossa época grave é que todavia não pensamos.” O deserto, o crescer do deserto: que moveu-se tão estranhamente contraditório! E segundo isto, o encerrar desertos guardaria conexão com o não-pensar-ainda, ou seja, com a maneira de pensar reinante desde longo tempo, com o reinado do representar. De acordo com o que foi dito, o enunciado do gravíssimo de nossa época retornava a falar na palavra de Nietzsche. O enunciado se incorporaria juntamente com a palavra de Nietzsche no curso de um destino que, ao que parece, teria de governar nossa terra em sua totalidade, até seus último rincões. Este destino agita (estremece, abala), em primeiro lugar, todo o pensar do homem, e isto em dimensões frente as quais já não é mais que um episódio o que para os contemporâneos se discute hoje até morrer, e também isto restringindo a um só setor: o literário. Não devemos, isto sim, equiparar agitação com vôo (imaginação, fantasia) e desmoronamento (precipício). O estremecimento no que é, pode ser a maneira de produzir uma posição de repouso nunca acontecido até agora, e a que se produz por radicar já no repouso na medula deste estremecimento. § 2º_ Por isso, nenhum pensar cria por si mesmo o elemento em que há de mover-se; mas todo pensar se empenha como por si mesmo em permanecer dentro do elemento que lhe foi destinado. § 3º_ Em que movimento se está movendo o pensar de Nietzsche? § 4º_ É necessário que vejamos com maior clareza este assunto, antes de dar os próximos passos em nosso caminho. É necessário ver que, no fundo, Nietzsche passa longe por sobre tudo aquilo que tem que contestar e combater nos planos periféricos, e que somente fala a fim de poder emudecer melhor. Nietzsche é o primeiro a colocar a pergunta pensante, isto é, aqui a pergunta que parte do metafísico e volta a indicar nesta direção, a que daremos a seguinte versão: Está preparado o homem atual em sua essência metafísica para assumir o poder sobre a terra em sua totalidade? (Tem pensado) Pensou já o homem atual quais são as condições essenciais a que está sujeito em geral semelhante governo do mundo: É apropriada a índole da essência deste homem para administrar aqueles poderes e utilizar aqueles meios de poderio que permanecem livres pelo desenvolvimento da essência da técnica moderna, obrigando o homem a tomar decisões desacostumadas até o presente? Nietzsche responde negativamente a estas perguntas. O homem atual não está preparado para a formação e assunção de um governo da terra; porque o homem atual, não somente aqui e ali, senão em toda sua maneira de ser, está caminhando atrasado de um modo estranho (diferente, esquisito) atrás do que faz muito que é. Porém o que propriamente é, o ser que predetermina todo ente, não se deixa nunca circunscrever registrando fatos, nem invocando circunstâncias especiais. A saudável? razão, tantas vezes e tão solicitamente ‘citada’ com ocasião de semelhantes tentativas, não é tão sã nem tão natural como suele? aparentar. Sobre tudo, não é tão absoluta como se apresenta, senão que é o produto superficial daquela maneira de representar que caracterizava finalmente a época das luzes no século XVIII. A saudável? razão fica moldada a uma determinada concepção do que é, deve ser e se permite que seja. O poder desta curiosa razão alcança até nossa época, mas _ já não alcança. As organizações de ordem social, o rearmamento de ordem moral, o ‘acicalamiento” do ativismo cultural, tudo isto já não chega a tocar o que é. Não obstante toda a boa intenção e o incessante esforço, todo este empenho não rende (rinde?) mais que recursos e expedientes de emergência e consertos para tal ou tal caso. Por quê? Porque o representar de metas, fins e meios, de efeitos e causas, no qual se originam todos os esforços, porque este representar, digo, de antemão que não é capaz de abrir-se ao que é. § 5º_ Existe o perigo de que o homem atual torne-se escasso (deficiente, breve) com seu pensamento sobre as futuras decisões, de cuja figuração histórica particular nada podemos saber, e que, por isso, as vá buscando onde nunca podem ter lugar. § 6º_ Que foi decidido, afinal de contas, na Segunda Guerra Mundial, para não falar de suas terríveis conseqüências para nossa pátria, em especial, a fissura que a parte ao meio? Esta guerra mundial não decidiu nada, se tomamos aqui o conceito de decisão em sentido tão alto e tão amplo que corresponda unicamente ao destino essencial do homem nesta terra. O que alcançou foi apenas fazer aparecer com maior clareza os contornos de quanto tem permanecido sem decidir. Mas aqui ameaça novamente o crescente perigo de que se pretenda fazer entrar à força nas categorias político-sociais e morais, todas elas demasiado estreitas e de curtos alcances, e em conseqüência por fora do alcance de uma possível e suficiente recapacitação aquilo que, havendo permanecido sem decidir, está se preparando para culminar em uma decisão e pertence ao governo de toda a terra em seu conjunto. § 7º_ Já o mundo das coisas da Europa de 1920 a 1930 não estava à altura do que por então estava tomando corpo. O que cabe esperar de uma Europa que pretende refazer sua estrutura a remendos (consertos) com os requisitos daquela década que seguia à Primeira Guerra Mundial? Um palhaço (tonto, bobo) para as potências e o imenso poder étnico do Oriente. No escrito Ocaso dos Ídolos, ou Como filosofar com o martelo, redigido no verão de 1888, escreve Nietzsche sob o título de “Crítica do moderno”: “Nossas instituições já não servem para nada: sobre isto há unanimidade de pareceres. Mas isto não é culpa das instituições, senão nossa. Depois de ter perdido todos os instintos que produzem as instituições, estamos perdendo as instituições como tais, por sermos nós os que já não servimos para elas. O democratismo tem sido em todo momento a forma decadente da força organizadora. Já em Humano, demasiado humano, I 349 (1878) designou a democracia moderna com todos seus ‘panos quentes’, qual um “Reich alemán”, como forma decadente do Estado. Para que haja instituições é preciso que haja uma espécie de vontade da tradição, da autoridade, da responsabilidade pelos séculos (pelo tempo), da solidariedade de séries de gerações continuadas em sentido ascendente e descendente, in infinitum. Onde existe esta vontade, ali se funda algo como o Imperium Romanum; ou algo como a Rússia, a única potência atual que tem poder de permanência dentro de seu âmago, que pode esperar, que pode prometer algo. A Rússia como contraste por excelência com o desprezado particularismo e nervosismo dos pequenos Estados Europeus, que com a fundação do Império alemão entrou em uma fase crítica... Todo o ocidente já não possui aqueles instintos que produzem as instituições, que produzem o porvir; talvez não haja nada que se faça tão ladeira acima a seu “espírito moderno”. Vive-se para hoje, vive-se muito apressado, vive-se muito irresponsavelmente: isto precisamente se chama “liberdade”. O que faz instituições das instituições, isto se descarta (menospreza), odeia-se, repudia-se: onde tão somente se faz ouvir a palavra “autoridade” já se crê ver o perigo de uma nova escravidão.” (WW.VIII, p.150 ss.). § 8º_ Para colocarmos com cautela de possíveis interpretações equivocadas por parte da razão, anotamos que o que Nietzsche designa neste lugar com “Rússia” não coincide com o atual sistema político-econômico das repúblicas soviéticas. O anseio de Nietzsche tem por meta pensar além do estatismo nacionalista, de cujo fenecimento já se havia advertido então por aquele, e esvaziar o terreno para as grandes decisões e a recapacitação que estas pressupõem. A razão do atraso do homem com respeito às coisas que são, a vê Nietzsche no fato de que nem sequer chegou a sua completa evolução e definição o ser do homem, tal como é até agora o presente. Segundo a antiga doutrina da metafísica o homem é o animal racional. Esta interpretação que reveste já um caráter romano, já não corresponde à essência do que os gregos pensavam sob o nome ______________. Pois, segundo este último, o homem é “o que surge estando presente, capaz de fazer aparecer o presente”. Para a concepção ocidental posterior, no entanto, o homem vem a ser um conjunto de peculiar estrutura de animalidade e racionalidade. Mas para Nietzsche nem a essência da animalidade, nem a essência da razão, nem a correspondente união essencial de ambas estão definidas, vale dizer, comprovadas e asseguradas. Daí que um abismo separe e ponha em oposição estes dois setores essenciais de animalidade e racionalidade. Esta dualidade impede ao homem ser unificado em sua essência e com isto livre para o que “suele” chamar-se de real. Por isso, o que antes de tudo integra o caminho do pensamento de Nietzsche é isto: ir (más) além do homem tal como tem sido até o presente, ainda não definido em sua essência, até a perfeita definição da plenitude de sua essência como foi até agora. No fundo, o caminho do pensamento de Nietzsche não quer revolucionar nada, senão somente repara algo. O caminho de ir-mais-além do homem como foi até agora, designa-o Nietzsche com o nome de “além-do-homem”, tantas vezes mal interpretado e objeto de tantos abusos. Voltemos a inculcá-lo: o além-do-homem segundo a mente de Nietzsche, não é o homem como foi até agora levado a uma superdimensão. O “além-do-homem” não exagera simplesmente até o excesso e o desmedido dos instintos e dos afãs da espécie humana tal como foi até agora o presente. Para o além-do-homem precisamente fica caduco o desmedido, o meramente quantitativo, a continuidade impertérrita ? do progresso. O além-do-homem é mais pobre, mais simples, mais terno e mais duro, mais silencioso e sacrificado, mais lento em suas decisões e mais moderado em seu falar. O além-do-homem não se apresenta tampouco em massa nem de qualquer maneira, senão somente quando se estabeleceu a ordem hierárquica. Sob a ordem hierárquica no sentido essencial e não somente no sentido de uma regulação de um estado de coisas existentes, entende Nietzsche a norma de que os homens não são iguais, não tendo cada qual a aptidão nem o direito a qualquer coisa, é dizer, que cada um não pode erigir sobre qualquer coisa um tribunal “qualquer”. Nietzsche, é uma anotação a seu Zaratustra, não publicada por ele mesmo, escreve assim: “A ordem hierárquica levada a cabo em um sistema de governo mundial: os governantes da terra ao fim, uma nova casta imperante. Aqui e ali, nascendo dentre eles e inteiramente um deus epicureo, o além-do-homem, transfigurados da existência: César com a alma de Cristo.” § 9º_ Não devemos passar precipitadamente por cima destas palavras; tanto menos quanto que invalidam outras que foram pronunciadas todavia mais profunda e misteriosamente, a saber, nos últimos hinos de Hölderlin onde Cristo, “sendo de outra natureza ainda”, é chamado o irmão de Hércules e Dionísio, de maneira que se vai anunciando aqui uma integração ainda não pronunciada do destino do Ocidente em seu conjunto, integração que é o único ponto de partida desde o qual o Ocidente pode sair ao encontro das decisões futuras, acaso para chegar a ser de uma maneira muito distinta um país do sol nascente. § 10º_ O além-do-homem é uma transformação e por isto uma repulsa do homem tal como foi até agora. Por isso também as figuras que vão aparecendo publicamente nos primeiros planos do atual processo histórico, não podem estar mais distantes dos que estão da essência do além-do-homem. § 11º_ No transcurso destas lições somente podemos esboçar a grandes traços algo da essência do além-do-homem, e também isto somente com a intenção prevista de fazer frente às mais cruas interpretações equivocadas e atitudes falsas a respeito do pensamento de Nietzsche, indicando os pontos de vista que podem servir para preparar os primeiros passos em ordem a uma discussão com o pensamento de Nietzsche. § 12º_ Ao pensar que hoje, se é que merece este nome, faltam a ele quase todos os elementos para uma interpretação do personagem do Zaratustra de Nietzsche, ainda mais para uma discussão com a doutrina metafísica fundamental de Nietzsche, das tarefas que, no fundo, são uma só. Devido a isto também a primeira assimilação dos escritos de Nietzsche que facilmente se levanta em direção ao sucessivo, causa logo dificuldades com exceção do insalvável. Sobre tudo ao ler Assim falou Zaratustra, é demasiado freqüente a inclinação a assimilar e julgar o lido de acordo às idéias que, sem prévio exame, entrega-se o leitor. Todavia agora é grande este perigo , especialmente para nós que, pela data de sua aparição, nos encontramos muito próximos aos escritos de Nietzsche, e sobre tudo porque a linguagem dos mesmos determinou a fala atual mais poderosamente do que sabemos. No entanto, quanto mais próximos temporalmente, e quase contemporâneo de nós seja um pensador, tanto mais longo é o caminho para o que pensou, e tanto menos é lícito esquivar este longo caminho. Também havemos que aprender primeiro a ler um livro tal como Assim falou Zaratustra de Nietzsche, da mesma maneira severa como uma dissertação de Aristóteles. Entenda-se bem: da mesma maneira, mas não de igual maneira. Pois, não existe um esquema geral, mecanicamente aplicável à interpretação dos escritos dos pensadores, nem sequer para um mesmo escrito do mesmo pensador. Assim, um diálogo de Platão, por exemplo, o Fedro, o diálogo do Belo, pode interpretar-se segundo os mais diversos âmbitos e aspectos, alcances e problemas. Tal pluralidade de interpretações possíveis não significa nenhuma objeção contra a exatidão do pensado. Tudo o verdadeiramente pensado de um pensamento essencial permanece, e isto por razões essenciais, equívoco. Esta equivocidade não é em nenhum caso o mero vício (costume) de uma univocidade lógico-formal a que, em rigor, deveria estender-se e que somente não tem sido alcançada na medida desejável. Pelo contrário, a equivocidade é o elemento em que necessita mover-se o pensar para poder ser exato. Expressando-o em uma imagem: as profundidades e espaços dilatados da água, suas correntes e remanso (quietude, águas paradas) , suas camadas cálidas e frias com seus múltiplos movimentos, são o elemento para o peixe. Se este, despojado da plenitude de seu elemento, é arrastado sobre a areia seca, somente lhe resta perecer agitando-se em convulsões de agonia. Por isto, é preciso ir ao encontro do pensar em meio de seu elemento (essência, fundamento, matéria) de equivocidade, sob pena de permanecer um huerto fechado para nós em sua totalidade. Assim se explica que aproximando-se, como sucede muitas vezes, a um diálogo de Platão, e recorrendo e julgando seu “conteúdo” conforme a maneira de ver da sana razão, acabe-se por chegar às opiniões mais extravagantes e se conclua julgando a Platão como cabeça muito desordenada. Se comprova, e não sem razão, que nem um só dos diálogos de Platão chega a um resultado palpável e terminado com o qual a razão sadia?, como suele? dizer-se, possa realizar algo. Como se esta razão _ subterfúgio de quem por natureza tem inveja ao pensar_ como se esta razão chamada saudável?, é dizer, impermeável a todo problema, houvesse jamais feito coisa alguma, pensando-a desde suas origens (princípio, aparecimento). § 13º_ Um diálogo de Platão é inesgotável, não somente para a posteridade com suas concepções sujeitas ao vaivéns dos tempos, senão também em si mesmo, por sua essência. Nesta há característica do criativo, que somente se revela ao homem capaz de venerar. § 14º_ Se aplicamos este pensamento ao caso de Nietzsche, cabe supor que o modo de conceber do último homem há de ser o menos apropriado para refletir livremente sobre o que Nietzsche pensa a respeito do nome de além-do-homem. § 15º_ O além-do-homem é antes de tudo um passante; daí que, onde mais facilmente se fazem visíveis alguns traços de sua essência é seguindo a transição naqueles dois aspectos que são próprios. § 16º_ De onde vem e para onde vai a transição? § 17º_ O além-do-homem vai mais além do homem tal como tem sido até o presente, distanciando-se, em conseqüência, deste último. De que índole é o homem a quem deixa atrás o além-do-homem? Nietzsche designa ao homem tal como tem sido até agora como o último homem. “O último” é a figura do homem que precede imediatamente à aparição do além-do-homem. De onde o último homem se faz visível como o que é, unicamente a partir da figura do além-do-homem. A este, no entanto, não o encontraremos jamais enquanto formos buscá-lo nos lugares da opinião pública teleguiada e nas férias do comércio cultural, onde é sempre e somente o último homem quem maneja o mecanismo. O além-do-homem não aparece nunca nos ruidosos desfiles de supostos poderosos, nem nos grandes encontros convenientemente composto por estadistas. A aparição do além-do-homem fica também inacessível para os tele-registradores e os cabos dos corresponsáveis que administram, isto é, apresentam os acontecimentos à opinião pública, ainda antes de haver acontecido. Estas formas do apresentar com ordens e mise-en-scéne, falsificam o que propriamente é. Tal falsificação não ocorre à margem, senão obedecendo o princípio de uma maneira de ver as coisas uniformemente imperante. Esta classe de representação falsificadora tem sempre de seu lado a razão sadia?. É o já famoso “homem da rua”, quem se faz presente hoje em dia em todos os setores, também o do comércio literário. Frente a esta forma falsificadora de representar as coisas, o pensar se encontra em uma situação ambígua. Nietzsche se advertiu disso claramente. Por um lado é necessário pegar um grito (?) à opinião e concepção comum e corrente quando pretende erigir-se em tribunal do pensamento, a fim de que os homens despertem. Por outro lado, o pensamento não pode dizer nunca a gritos (?) o que tem pensado. Por isso, ao lado da palavra de Nietzsche, antes citada, sobre o gritar e tocar o bombo?, devemos considerar esta obra que diz assim: “as palavras mais silenciosas fazem que se aproxime a tempestade. Pensamentos que vêm com pés de pomba são os que dirigem o mundo.” (Assim falou Zaratustra, parte 2ª, A hora mais silenciosa.) § 18º_ É assim como também Nietzsche _ e o passamos por alto com demasiada facilidade_ nunca publicou no “Zaratustra” seu pensamento propriamente dito . Todos os escritos posteriores ao “Zaratustra” são controversiais; são brados. Seu pensamento propriamente dito recente veio a ser conhecido através da publicação _ em grande parte _ de suas obras póstumas. § 19º_ De tudo o que está dito resulta claro que não se pode ler a Nietzsche de uma maneira vaga e indefinida, que cada escrito seu tem seu caráter peculiar e seus limites; e sobre tudo que a obra principal de seu pensamento, contida nos escritos póstumos, nos formula exigências as quais não estamos em condições de corresponder. Por isso é aconselhável postergar, por hora, a leitura de Nietzsche para estudar previamente por dez ou quinze anos a Aristóteles. § 20º_ Como caracteriza Nietzsche o homem (mais) além do qual avança o transeunte? Zaratustra diz no prólogo: “eu vos mostro o último homem!”. (tradução provisória: sandra a fasolo)